sexta-feira, 6 de novembro de 2015

- Amordaçados -

Nanquim - 15 x 15 cm - 2015
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Há alguns anos atrás publiquei por aqui um desenho que dei o nome de "Multidão", feito com caneta esferográfica comum há mais de 10 anos atrás e que teve (e ainda tem) bastante visitação no site. Na época, o desenho surgiu como um passatempo bobo começando apenas com um rosto feito numa folha de papel, sem qualquer pretensão e aos poucos, sua composição foi aumentando e chegou onde chegou. Acontece que com o passar do tempo, inevitavelmente vamos revendo os antigos trabalhos e por consequência, surge a autocrítica, a análise e acabamos encontrando um monte de outras possibilidades melhores que poderiam ter sido feitas, mas que na época não foram escolhidas... enfim, cabeça de artista é uma complicação! O trabalho de hoje é uma revisita ao tema, mas desta vez corrigindo alguns pontos, acrescentando um pouco mais de profundidade (tanto no que se refere ao contexto do tema quanto na disposição do desenho), ou seja, um trabalho feito prestando muito mais atenção nos detalhes.


O processo artístico

Nas minhas eventuais aulas, eu costumo fazer alguns comparativos entre a produção de um trabalho artístico e coisas comuns do dia a dia, como por exemplo, fazer um bolo, viajar para um lugar nunca visitado antes, construir uma casa ou algo do tipo. Usando o exemplo da casa, quando uma vai ser construída o pedreiro dificilmente começa a casa sem uma planta para orientá-lo. Pode até fazer sem uma planta, mas é claro que se o pedreiro tiver uma, as chances de ter uma construção que agrade mais, com um espaço melhor distribuído e que seja até mais segura são enormes se comparados a quem faça sem um roteiro. Na arte (e em um monte de outras situações, se refletirmos direito), a lógica funciona de forma parecida e o tal "mapa", artisticamente falando, costuma se chamar "esboço". Não que seja obrigatório fazer esboços, mas com certeza, pensando a arte detalhadamente antes de produzi-la o resultado será melhor. Houve grandes artistas que não faziam esboços, como é o caso de Caravaggio, mas com certeza ele tinha um plano bem claro na sua cabeça antes de colocar a mão na massa.

No caso da arte deste post, a escolha do tema foi o resultado de muita observação e reflexão de situações que ocorrem no dia a dia, mas que nem sempre são claras para nós. Ainda que a nossa comunicação seja incrivelmente ampla nos dias de hoje, utilizando diversos meios e canais diferentes, recorrendo a tantas fontes diversas, esse excesso de informação ainda assim nem sempre é uma garantia do acesso a verdade. E por que? A verdade tem muitas faces, versões e até interesses escondidos. No caso do Brasil, a situação já foi muito pior neste aspecto, sem dúvida. Hoje vivemos diariamente sob uma tempestade de informações que tem todos estes ingredientes na sua receita e cabe a cada um de nós ter olhos atentos para saber ler nas entrelinhas de cada nova informação e filtrá-las apropriadamente. Uma notícia pode estrategicamente suprimir dados importantes, evidenciando muito mais outros, de acordo com os interesses maiores da empresa (nos casos dos grandes veículos de mídia), porque não tem nenhum santo neste negócio. Por mais que hajam fontes alternativas de informação como blogs, redes sociais e etc, o reflexo de uma notícia veiculada na grande mídia ecoa também nestes meios e chega no ouvido do povo, que digere de qualquer jeito, inclusive os boatos que estão sempre presentes. Fica então uma impressão estranha de que a verdadeira voz do povo nunca é ouvida de fato, seja porque não falam a mesma língua ou porque nem mesmo saibam o que falar. É claro que há muitas teorias da conspiração sobre esse assunto, mas ninguém pode negar que a imprensa hoje é um poder importante.

Outro aspecto que me fez optar por uma multidão de amordaçados acontece também nas pequenas cidades no interior do país que ainda vivem sob a batuta de pequenos grupos que se alternam no poder e que se utilizam disto para criar uma aura de medo da perseguição política em pessoas que se mostram mais combativas contra as irregularidades que sempre aparecem e, mesmo que não apareçam comprovadamente, não é tão difícil percebe-las. Aqui também o povo é amordaçado. O mesmo acontece com tantos outros povos de outras nações que não são ouvidos (ou permitidos falar) por seus governantes e que são fáceis de encontrar nos noticiários pelo mundo, como por exemplo a onda de refugiados que tem invadido tantos países, não importa se são sírios, palestinos ou de qualquer canto do globo. Seus atos desesperados falam mais que sua bocas amordaçadas.

Há também a possibilidade de levar toda essa simbologia de uma multidão amordaçada para um espectro universal e pessoal. Grande parte das pessoas hoje, principalmente essa geração atual, tem se mostrado tão deslumbrados e dependentes das novas tecnologias que é difícil não refletir sobre tudo isso. Através das "selfies" postadas nas redes sociais, videos e etc, um narcisismo vazio é disseminado como algo louvável, cultivando uma falsa aparência em busca de aceitação social e autopromoção. Palavras como "ostentação" nunca estiveram tão em moda... a meta parece que é despertar a inveja nos outros, que vez por outra estão ali, sorrateiros, espiando a vida alheia exposta, agindo como voyeurs. Até mesmo os assaltantes tem caído nesta armadilha, exibindo o fruto dos seus furtos. É a busca da fama a qualquer custo, mesmo que para isso seja adotado um discurso que não seja necessariamente sobre algo que se acredita. A voz interior é amordaçada por um bem maior, que depois de um tempo não se mostra tão vantajoso assim. Mesmo cercado de pessoas por todos os lados, ainda assim nunca estivemos tão sozinhos e isolados, talvez porque o egocentrismo é uma névoa espessa que nos envolve. Não temos o que falar, porque estamos amordaçados pelos modismos. Quem poderia imaginar há algum tempo atrás que existiria um produto tão vendável quanto o "pau de selfie"? O simbolismo desse desenho é bem amplo e sugere muitas interpretações.

Em cada rosto que fiz eu busquei criar, através de expressões distintas, um mundo solitário e particular de pensamentos que flui naquele momento, silenciosamente. Tentei expressar várias coisas em cada um deles, como a desconfiança com alguém próximo, a raiva de não poder falar apropriadamente, o medo de alguma resposta mais enérgica do opressor, a indiferença por tudo em volta, o tédio, a tristeza, a ingenuidade, a presunção, a fé em algo maior que vai lhe livrar do mal, a busca por entender o que está acontecendo naquele momento, a esperança de que tudo vai dar certo no fim, a desesperança, o efeito de algum entorpecente, a nostalgia de outras épocas ou mesmo, alguém que simplesmente está pensando em futilidades ou em coisas menores do cotidiano, como as tarefas do dia ou a conta que precisa ser paga, etc. Logicamente, a interpretação fica a critério de cada um.

Assim como aconteceu em "Multidão", todos os rostos foram criados e não houve nenhum (ou quase nenhum) modelo. O "quase nenhum" foi porque este desenho demorou um pouco para ser feito e neste meio tempo, eu aproveitava para observar os conhecidos, familiares e pessoas por quem eu passava na rua para ver de relance algumas características, penteados, etc. Quando já estava perto do final que a coisa foi ficando interessante, porque como os desenhos foram ficando menores, com poucos traços um rosto já era feito, ainda que exigisse muito mais precisão. Nesta parte foi batendo mais vontade de colocar celebridades (confesso que eu acabei incluindo um John Lennon aí no meio), mas no geral, são todos frutos da minha imaginação mesmo. Ao contrário de "Multidão", neste desenho escolhi a caneta nanquim descartável para produzir o trabalho, sobretudo por sua praticidade e nos casos dos desenhos menores, as canetas de ponta mais fina (0,1 e 0,05) foram uma excelentes opções.

Referências

Apesar de ser um desenho pensado, detalhado e que levou um tempo considerável para fazer, eu ainda o considero apenas como um esboço para algo maior que pode eventualmente surgir adiante. Não houve um artista importante da história que eu tomasse como uma referência ou ponto de partida para a produção do trabalho... na verdade, foi um desempenho bastante livre, pessoal e sem muitas regras. Uma arte realmente mais com a minha cara (me perdoem o trocadilho). Pensando bem, a referência acabou sendo o antigo trabalho "Multidão", porque foi o que percebi nele que não tinha sido explorado que me motivou a fazer esta nova versão.

Detalhe de "Procissão Religiosa em Kursk" de Ilya Repin, detalhe de "A Deposição da Cruz" de Van Der Weyden e detalhe de "A Verdade Está Morta" de Goya.
É claro que houve artistas importante que já fizeram algo parecido, mas num contexto completamente diferente e que, por alguma característica bem específica, eu acabei me lembrando brevemente durante a produção deste desenho. Foi o caso do artista russo Ilya Repin, principalmente por sua fantástica obra "Procissão Religiosa em Kursk", onde em meio a procissão ele consegue retratar muito bem a desigualdade social. Em termos de expressão dos personagens, um nome merece ser citado: Rogier Van Der Weyden. O pintor flamengo era um mestre em criar expressões, sobretudo em sua famosa "Deposição da Cruz". Mas um artista que foi muito mais lembrado foi o espanhol Francisco Goya, principalmente por suas gravuras em que ele fazia diversas críticas aos fatos de seu tempo, como os desmandos da igreja e as barbaridades da guerra. Mas como disse antes, estas referências se exerceram neste trabalho de forma muito indireta e sutil.

A Obra

Pelo tamanho pequeno do papel (na verdade, é apenas uma página de um dos meus cadernos de esboço), a dificuldade deste trabalho foi bem considerável, afinal são muitos detalhes e para criar a perspectiva da multidão, os rostos mais distantes precisavam ser muito menores do que os da frente, logicamente. Na verdade, a grande dificuldade para mim não foi nem a composição dos personagens em si, mas a demora em concluir o trabalho, que levou muito mais tempo do que eu tinha planejado. Em comparação com o desenho mais antigo, apesar deste também retratar uma multidão, é notório que desta vez fiz muito mais rostos e com muito mais expressões variadas. Com o tempo, o desenho antigo me pareceu ter rostos muito padronizados, tipo foto 3x4... passava uma impressão meio artificial.

O desenho ficou muito bom, me agradou bastante e quem sabe, sirva até para amadurecer a ideia de pintar uma tela desta mesma temática, mas no caso de uma pintura, precisaria de muito mais pesquisas porque se ela acontecesse mesmo, provavelmente seria colorida e precisaria ter bastante variações de tons de pele, afinal, uma multidão nunca é homogênea. Mas até lá, tem muita água pra passar debaixo da ponte.



Licença Creative Commons
"Amordaçados" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.




8 comentários:

  1. PARABÉNS pelo trabalho, Edu! Valeu a pena o teu esforço, e, acredito sinceramente, que tens talento suficiente para produzires uma tela em cores e em tamanho maior. Ficará muito bom, tenho certeza disso. Gostei muito do teu texto também: além da menção a outros pintores, conseguiste fazer uma contextualização do momento que atravessamos.
    MUITO BOM!!!

    Beijos

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  2. Grande Edu!
    Gostei! Um tanto perturbador, mas excelente. E, sim, retrata muito bem muita coisa pelo que temos passado nos últimos tempos.
    Por outro lado, me lembrou uns desenhos que eu costumava fazer, tipo umas charges, mais especificamente a "cara amarrada", em que eu desenhava um rosto amarrado com uma corda (hehehe). Esses desenhos eram sempre representações de expressões que utilizamos no dia a dia, com um toque de humor, coisas do tipo "de queixo caído", "cara amassada", "cara de quem comeu e não gostou" e por aí vai... rsrsrs
    Aquele abraço!

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    1. Pois é, meu caro... tentei fazer algo que perturbasse mesmo, por conta dessa loucura generalizada que tem se espalhado por aí afora. Mas fiquei curioso pra ver esses desenhos seus! FaloU!

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  3. Belo trabalho, Eduardo. Porque você disponibilizou esses seus desenhos no Creative Commons, usei um deles em uma campanha contra a lei da mordaça em Campo Grande, MS, com o devido crédito. Espero que goste. Grato.
    https://www.facebook.com/FalouPoucoMasFalouApurado/photos/a.180658992073841.44285.179892732150467/693473660792369/?type=3&theater

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    1. Sem problemas, Paulo! Muito boa a sua iniciativa, a propósito!
      Falou!

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  4. Como eu queria ir em uma exposição sua!!! :(

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  5. Obrigado, Erre Jr. Realmente, tem um tempinho que não tem uma exposição minha... mas vamos ver se remediamos este problema logo!

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