sábado, 5 de novembro de 2022

- O Crítico de Arte -

Acrílico sobre tela - 100 x 120 cm - 2022
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Algumas vezes, o contexto da produção de uma obra de arte é um capítulo à parte, seja pelo conteúdo que tem muito a dizer ou por tudo o que acontece durante a sua produção. A pintura de hoje é um destes casos singulares, tanto no que diz respeito ao que o tema trata e tenta destacar como em toda a história de bastidores até que estivesse pronta (o que vou abordar mais abaixo). Basicamente, a obra tenta retratar a dificuldade que muitas pessoas têm de compreender uma obra de arte moderna e/ou contemporânea e todo o preconceito e estereótipos que as pessoas acabam alimentando com obras, temas e artistas, fruto maior da desatenção que é dada ao ensino de arte nas escolas do Brasil.

O processo artístico

"O Crítico de Arte" (detalhe)
Provavelmente esta é a tela que eu levei mais tempo para terminar, nem tanto pela dificuldade na produção dos detalhes, mas por uma série de coisas que aconteceram no decorrer desta pintura que eu nem sequer imaginava. A ideia desta tela é bem antiga e eu iniciei os primeiros rascunhos da pintura no final de 2012, ou seja, muita gente entrou e saiu da minha vida do início ao fim desta pintura. O foco principal da tela é na obra “A Fonte” de Marcel Duchamp, considerado como a primeira instalação da história da arte e praticamente que abriu as portas para a arte conceitual. Mas a ideia não era focar exclusivamente nesta obra, até para não dar margem para que pudessem entender como uma crítica direcionada à obra de Duchamp, então busquei inserir outras obras de artistas como Mark Rothko, Jackson Pollock, Piet Mondrian e Alberto Giacometti, compondo o cenário de uma exposição.

"O Crítico de Arte" (detalhe)
O início desta pintura não teve grandes novidades, iniciando como de costume pela pesquisa das referências de cada um dos elementos da obra, como o posicionamento das pessoas, o ambiente da exposição, as obras que figurariam na imagem da mostra, o efeito das sombras no piso, coisas assim. A parte um pouco mais trabalhosa neste início foi tentar reproduzir uma obra de Pollock, já que é praticamente impossível criar uma cópia, mas busquei alguma semelhança na forma como pintar, na disposição do gotejamento da tinta, nas formas mais amplas, etc. Tudo foi indo num processo normal, até que em 2013 nasceu meu filho e com isto, fui obrigado a fazer uma pausa. Passado algum tempo, retomei a pintura, fui completando outras partes até que em 2014, outra eventualidade me obrigou a parar novamente: no trajeto até o trabalho da minha esposa, ela sofreu um acidente de carro e faleceu, assunto que tratei por aqui na época. Por motivos óbvios, foi um período bem difícil e esta pintura ficou parada um bom tempo. Quando decidi retomar a pintura, percebi um erro no posicionamento do personagem principal que já estava pronto (uma perna estava mais curta e numa posição irreal) e que era preciso corrigir, então isto também acabou interrompendo o processo. Em situações assim, durante uma produção artística, em que ocorrem tantos intervalos grandes como os que aconteceram aqui, a motivação acaba não sendo a mesma e o processo se torna cada vez mais arrastado.

Protesto na frente do Santander Cultural,
em 2017.
Com tantos intervalos grandes durante o processo artístico, muitas coisas foram acontecendo e que me serviram para refletir melhor e dar mais embasamento ao que tratava a pintura, sobretudo os fatos ocorridos em 2017, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. Naquele período, a extrema direita com o seu discurso moralista vinha crescendo e arrebanhou muitos adeptos, que logo voltaram suas atenções para o meio artístico. Os casos mais famosos daquele período foram os ocorridos na exposição “Queermuseu” do Santander Cultural, a exposição “Cadafalso” da artista Alessandra Cunha e a performance “La Bête” no MAM-SP do artista Wagner Schwartz, que geraram grande repercussão, censuras, protestos, criminalizações e até agressões. Exemplos mais que didáticos para o que eu estava tratando nesta pintura… a ignorância das pessoas que avaliavam de forma rasa e tendenciosa o tema das obras e os meios utilizados, sem sequer buscar conhecer os conceitos e contextos das obras em questão.

Protesto na frente do MAM/SP em 2017.
Claro que houve uma apropriação política de grupos interessados sob o pretexto da defesa da moralidade e de pautas conservadoras. Estes levaram as discussões para a internet, sem explicar muito o contexto, potencializando as reações de um público que não teve uma formação adequada em arte. Nas polêmicas que se desenrolaram, ficou claro o que o senso comum acreditava ser a “boa arte”, com estereótipos bem enraizados de como a arte deve, idealmente, abordar o seu conteúdo, de preferência meramente contemplativa, naturalista ou reproduzindo ideais de beleza, excluindo qualquer abordagem conceitual ou que fuja destas ideias pré-concebidas. No final das contas, todo o atraso que ocorreu nesta produção foi essencial para que estes todos acontecimentos mostrassem claramente que o que é abordado nesta arte é bem coerente, assim como grupos que se apropriam de pautas moralistas usam esse preconceito baseado em desconhecimento e estereótipos para manipular opiniões.

Referências Artísticas

"A Chapelaria" de Auguste Macke
Naturalmente, quem vê esta obra imagina que as referências imediatas para ela sejam os trabalhos de Duchamp, Pollock, Mondrian, Rothko e Giacometti, que eu realmente busquei me aprofundar um pouco mais. Em algumas delas, não segui exatamente como deveriam ser no que se refere ao tamanho proporcional, como no caso da obra de Pollock, que deveria ser maior do que eu fiz nesta pintura. Mas quando eu faço o recorte de “referências artísticas” aqui, me refiro ao trabalho de artistas que imediatamente acabam servindo como norte no momento que estou produzindo o trabalho e, neste caso, foram dos artistas Norman Rockwell e Edward Hooper, que sempre foram grandes influências no meu trabalho, mas também de August Macke. A ideia de retratar uma cena da pintura como se fosse uma foto, um flagrante de uma cena corriqueira, é algo que está muito presente nos trabalhos de Rockwell e Hooper e que norteiam um pouco o que eu busco no meu próprio trabalho também. A ideia é que a pintura atue como se fosse o ponto de vista de alguém que estivesse ali presente.

"Passeio" de August Macke
Quanto ao trabalho de August Macke, artista alemão do início do séc XX e que aos 27 anos morreu em combate na 1ª Guerra Mundial, veio mais na forma da expressão no rosto dos personagens. Na obra de Macke as pessoas são como meros elementos de um todo e muitos personagens não possuem fisionomia, como se estivessem inacabados, principalmente na sua fase mais madura de produção. Esta característica específica me passou uma ideia de como ressignificar as expressões, usando esta forma de pintar para transmitir pelas faces indefinidas dos personagens o quanto não conhecemos as pessoas, como são, o que pensam e o que sentem. A partir de então, comecei a explorar mais esta forma de produzir.

A Obra

"A Fonte" de Marcel Duchamp
Além da mensagem da ação extrema de ignorância de um espectador num museu sobre a obra, dando ali de sua forma peculiar e primal o veredito do que ele pensa da obra, há uma inversão de valores de algo que já havia sido invertido originalmente. Quando Duchamp deu sua explicação para “A Fonte”, ele argumentou que tinha retirado o urinol de sua função de utilidade, que era receber urina, e dado a ela uma nova função, estética, ao mudar sua posição e transformá-la em arte (e de certa forma, transformando o útil em inútil). Duchamp era um gozador… escolheu um mictório por sua falta de beleza e por seu caráter erótico. Naturalmente, quando “A Fonte” foi apresentada na Exposição de Artistas Independentes de 1917, era um confronto ao puritanismo, uma clara provocação ao júri do evento (do qual ele próprio fazia parte), que tinha estabelecido que sendo artista e pagando a taxa de inscrição, teria seu trabalho exposto. Causou enorme repercussão, sofreu ataques e a peça que vemos hoje exposta pelo mundo nem sequer é a peça original de 1917, que já foi destruída, mas substituída por outro exemplar pelo próprio Duchamp. A obra de arte tinha deixado ali de ser o produto de um meio para se tornar uma ideia.

"O Crítico de Arte" (detalhe)
Ao fazer uma pintura num estilo mais realista onde uma pessoa utiliza “A Fonte” como um urinol, de certa forma eu faço uma brincadeira, retornando a peça para sua função original, para a qual foi pensada, usando de uma arte tradicional para subverter uma arte conceitual. Ao mesmo tempo, questiona também a necessidade que muitas pessoas têm de encontrar uma utilidade para tudo (e todos, até), para que só assim possa ser validada. Depois de concluída a obra, é que descobri que em 1993 um homem já tinha realmente urinado na peça, assim como fiz nesta pintura.

Não sei se a mensagem deste trabalho consegue ser tão clara, afinal, como o próprio trabalho denuncia, não são muitos (como deveria ser) que sabem o contexto e o significado da obra, mas acredito que com esta obra eu provoco, ao menos, o espectador para que busque conhecer o significado do que é retratado, se houver curiosidade, naturalmente.

Imagens: Google

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Referências bibliográficas:

GOMPERTZ, Will. "Isso é Arte?: 150 anos de arte moderna do impressionismo até hoje"; tradução Maria Luiza X. de A. Borges; [revisão técnica: Bruno Moreschi]. - 1ª Ed. - Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

MESEURE, Anna. "Macke"; tradução Luísa Rodrigues. Lisboa: Taschen, 2000.

______. "Após protesto, mostra com temática LGBT em Porto Alegre é cancelada". Folha de S. Paulo. São Paulo, 10 setembro 2017. Artes plásticas. Ilustrada. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1917269-apos-protesto-mostra-com-tematica-lgbt-em-porto-alegre-e-cancelada.shtml>. Acesso em: 05 novembro 2022.

BRUM, Eliane. "Wagner Schwartz, 'La Bête': 'Fui morto na internet como se fosse um zumbi da série The Walking Dead'”. El País. São Paulo, 12 fevereiro 2018. Opinião. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/12/opinion/1518444964_080093.html>. Acesso em: 05 novembro 2022.

______. "Museu em SP é acusado de pedofilia após performance com nudez". Folha de S. Paulo. São Paulo, 28 setembro 2017. Artes plásticas. Ilustrada. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1922810-na-internet-museu-e-acusado-de-pedofilia-apos-performance-com-nudez.shtml>. Acesso em: 05 novembro 2022.

RECH, Alessandra Paula; SCHUTZ, Danielle. "Episódio Queermuseu: reflexos do despreparo social em torno da Arte". Palíndromo, v.9, n.19, p.13-30, setembro-dezembro 2017. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/palindromo/article/view/11051 

VALENTE, Rubens. "Deputados pressionam, e polícia apreende quadro em exposição no MS". Folha de S. Paulo. Brasília, 15 setembro 2017. Artes plásticas. Ilustrada. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1918799-deputados-pressionam-e-policia-apreende-quadro-em-exposicao-no-ms.shtml>. Acesso em: 05 novembro 2022.






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