quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

- Consumido -

Acrílico sobre papel - 29 x 42 cm - 2019
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Eu costumo dizer que as artes visuais têm a ingrata missão de contar uma história, passar uma mensagem, com apenas uma única imagem estática, pensando nas artes visuais no hemisfério de pintura, desenho, escultura e fotografia. Muitas vezes essa mensagem é complexa e subjetiva, o que dá margem para diferentes interpretações.

Quem pensa exclusivamente no caráter decorativo de uma obra de arte está completamente enganado! Logicamente que há obras muito belas e há algumas delas que se valem apenas do caráter estético, mas acredito que pouquíssimas (principalmente aquelas que buscam o seu lugar no meio artístico) se enquadrem nisto. A arte também fala do mundo, da atualidade, faz críticas e tem algo a dizer… não é apenas um design bem feito. A arte de hoje fala sobre algo que inunda os nossos tempos e que não está restrito por fronteiras, que é o consumismo.

O processo artístico

Vocês já se deram conta do quanto as grandes empresas investem em pesquisas sobre hábitos de consumo, estudos comportamentais, design de produtos, entre outras tantas, só para aumentar o potencial de venda de uma marca ou de um produto? E o quanto nós, os consumidores em potencial, somos direcionados a comprar coisas que muitas vezes nem precisamos de fato? E eis que temos mais um presente do capitalismo: o consumismo desenfreado. Como tudo nesta vida, direta ou indiretamente, está interligado numa rede que se desenvolve, este hábito contemporâneo gera diversas situações que impactam nossa vida, em nossa saúde mental e, por que não, na vida no planeta como um todo. Todo esse papo muito provavelmente vocês já conhecem.

Portanto, considerei que era importante fazer uma arte que trata do quanto somos, diariamente, invadidos e bombardeados por propagandas, sempre oferecendo a ilusão de bem-estar através do consumo de um produto. Para isto, tentei passar uma sensação de vertigem utilizando uma perspectiva um pouco esférica (no estilo do efeito “olho de peixe” das câmeras fotográficas) de alguém que é quase engolido por um mar de propagandas, com diversas frases no imperativo, quase como ordens, oferecendo vantagens, melhor aparência, etc. Também utilizei várias marcas conhecidas no mercado brasileiro e internacional para deixar ainda mais clara a mensagem, independente da língua de quem estiver vendo, que é algo que eu sempre busco nos meus trabalhos.

Naturalmente, para fazer esta tela fui obrigado a mergulhar no universo das propagandas, pesquisar diversas marcas famosas e os slogans que geralmente são utilizados, as táticas de mercado e por aí vai. Esta nem foi a parte difícil, na verdade… fazer os diversos detalhes pequenos das marcas, dos objetos, fontes e ainda equilibrar com harmonia as cores no todo acabou consumindo muito mais tempo do que eu estava esperando. Pessoalmente, o ato da pintura é um momento de entrar numa brecha do tempo e, apesar de estar concentrado no que faço, também é um período de mergulhar nos pensamentos. Contraditoriamente, apesar de ser um exercício de paciência, acaba gerando também alguma ansiedade (controlada, obviamente) de acabar logo e ver o resultado final e quando este processo demora mais do que era previsto, vai gerando uma sensação um tanto chata.

Referências

"Garrafas verdes"
de Andy Warhol
Pelo contexto desta arte e da mensagem que eu pretendia passar com ela, a referência imediata foi mesmo a Pop Art, que sempre fez críticas utilizando a reprodução em massa de produtos e ícones da cultura pop (e naturalmente, dentro da Pop Art, quase impossível não nos lembrarmos de Andy Warhol). Sempre gostei da Pop Art, como já disse diversas vezes neste site, apesar de não concordar com a forma como o processo da arte acontece com alguns artistas, como o próprio Warhol. Neste movimento, a obra de Roy Lichtenstein fala mais intimamente comigo. Mas enquanto fazia este trabalho, acabei me lembrando (por uma vaga semelhança no aspecto pictórico) de um artista mais contemporâneo e provavelmente mais excêntrico: o austríaco Friedensreich Hundertwasser… e que vale muito a pena falar dele aqui.

Hotel Village Blumau na Italia, projeto de Hundertwasser
"Jardim Tropical" de Hundertwasser
Hundertwasser foi um artista multimídia que atuava como pintor, ilustrador, ativista, ambientalista e arquiteto, com todas estas atividades interligadas em seu trabalho, repleto de significados. Na arquitetura, os elementos da sua pintura são visíveis (dão a impressão de serem quase como ilustrações físicas), ao mesmo tempo em que buscava integrar em suas construções a natureza e urbanização harmonicamente, numa atitude consciente de que este deve ser o caminho a ser seguido para uma vida saudável, sem brigar contra o meio ambiente.

Conjunto Habitacional em Viena
Uma característica interessante da sua obra, além de super coloridos, é perceber o quanto ele utilizava as linhas curvas e a assimetria, mesmo na arquitetura. Com seus edifícios e casas cobertos de árvores e vegetação acompanhando a topografia, a ideia dele era de que o homem fosse incorporado à natureza (e não o contrário). Falecido em 19 de fevereiro de 2000 (há exatos 20 anos – uma feliz coincidência com esta publicação), seu legado é mais atual do que nunca… em tempos em que vemos as consequências do aquecimento global cada vez mais clara, precisaríamos de muitos Hundertwasser atuantes em nosso meio.

A Obra

Depois do parto que foi terminar este trabalho, o resultado me agradou bastante e foi realmente o que eu esperava que fosse. A ideia, que já estava nos meus planos há um bom tempo, tinha como princípio básico uma pessoa diante de um mar de outdoors, mas ainda me faltava uma linha guia para que isto fosse concretizado. O trabalho não trata apenas da crítica sobre o consumismo desenfreado, mas também dos efeitos que ele causa no nosso ambiente, seja pela degradação do meio ambiente causado pelo aumento do lixo produzido pelo consumo, como também pelos efeitos que essa poluição visual causa nas cidades (sobretudo nas maiores), por essa competição acirrada das propagandas pelo espaço de maior visibilidade.

Porém, em trabalhos em que há uma mensagem mais crítica, fica por vezes a dúvida se as pessoas estão compreendendo a mensagem da obra e tudo o que está intrínseco nela, mesmo que esta mensagem esteja cristalina para nós. Não sei se com esta obra isto acontece, mas a reação das pessoas diante de uma obra de arte é sempre um mistério, tanto quanto gera uma polêmica quando gera uma reação indiferente (quando era esperado alguma polêmica). E talvez seja justamente isso uma das coisas que faz a arte ser fascinante!


Imagens: Google



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"Consumido" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
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6 comentários:

  1. Muito bacana!! E ah..adorei o título da obra! ;)

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  2. Oi Edu! Parabéns pelo belo trabalho, como sempre, foste bem ao fundo. Não conhecia nada da obra de Hundertwasser, é extraordinário. Obrigada.
    Beijos

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    Respostas
    1. Oi Ci! Obrigado... realmente o trabalho do Hundertwasser é incrível, mas ainda pouco conhecido no Brasil. O que ajudou a mudar um pouco isto foi um livro sobre ele publicado pela Taschen (que tradicionalmente publica livros sobre diversos artistas e assuntos ligados à arte). O ruim mesmo é pronunciar esse nome! rs

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  3. Qual a dimensão da obra e quando foi feita?

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    Respostas
    1. Oi! No início das publicações tem essas informações... a obra é de 2019 e é do tamanho A3 (29 x 42 cm)

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