Acrílico sobre tela – 130 x 90 cm - 2022
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Já há algum tempo venho notando que muitas artes importantes que eu produzi ainda não figuraram por aqui e estou planejando publicar mais frequentemente sobre estes trabalhos, como é o caso desta arte, que tem como tema um pequeno recorte do ambiente da zona rural. A maior parte da população do Brasil vive em áreas urbanas (87,4%, segundo o Censo Demográfico de 2022 do IBGE), mas esta distribuição é desigual e varia de acordo com a região do país. Se este recorte mirar apenas o estado da Bahia (estado onde resido), a porcentagem passa a ser de 72%. É bem interessante ver como é a vida nestas comunidades, as diferenças que existem de um lugar para o outro e, sobretudo, como as pessoas que não conhecem estes lugares imaginam como eles sejam. É justamente sobre este aspecto que esta pintura, de forma subjetiva, busca contribuir com um ponto de vista.
O processo artístico
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Estrada da zona rural para a comunidade de Calumbi, em Macaúbas/BA |
Na verdade, este trabalho surgiu como uma encomenda que não é algo que costumo aceitar com frequência, porque sei que a probabilidade de demorar em ficar pronto é enorme e geralmente a expectativa das pessoas com estes trabalhos costuma ser bem mais breve... depende muito também da ideia me atrair, da proposta se encaixar com o meu estilo ou de ter alguma ideia que encaixe no tema. Apenas me falaram como seria a imagem, descrevendo brevemente o cenário e essa “tradução” para as imagens ficaria a meu cargo, naturalmente. Tomando como base como é a maioria das localidades da zona rural no município de Macaúbas/BA, retratei de forma livre uma estrada comum de zona rural como as que existem por aqui.
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Cena do filme "O Auto da Compadecida" |
Há muitos estereótipos quando falamos de como é a zona rural para quem não conhece esta realidade e em alguns casos, reconheço que é difícil de visualizar o cenário porque se trata de um outro país, que funciona num outro ritmo. Estes estereótipos acabam sendo reforçados por meio de produções de cultura de massa, como novelas, séries e filmes, que muitas vezes focam de forma rasa esta realidade, que é muito mais ampla e diversa. Se além de citarmos que se trata da zona rural, acrescentarmos que o local fica no sertão nordestino, é aí que os estereótipos e preconceitos aumentam consideravelmente no imaginário de quem não conhece, de um lugar marginalizado por uma visão reducionista. Geralmente está fixada na mente das pessoas (quando se trata apenas do ambiente propriamente), a ideia equivocada de um lugar árido e, de certa forma, até inóspito.
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Pinturas "O Caminho da Roça" e "Caminho do Coité" |
Tomando como partida esta visão estereotipada do imaginário de quem não conhece, decidi fazer esta arte mostrando como é uma estrada rural típica, mas ao invés de um local totalmente seco e sem vida, mostrei um cenário fértil de um período de
transição da seca para o período das chuvas, em que a vegetação está em franca recuperação. Este tempo de transição da seca para o período das primeiras chuvas, é bem fácil perceber como a vegetação responde com rapidez e o cenário volta a ficar verde em questão de pouco tempo, mostrando que a vida ali está firme, resistente e é adaptada à estas mudanças. Já havia feito antes cenas deste tipo (ainda que em escala bem menor), mas com uma vegetação muito mais verdejante e densa, como é o caso das obras
“Caminho da Roça” e
“Caminho do Coité” (ainda não publicado por aqui).
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Detalhe da pintura "O Caminho Rural" |
Apesar de não ser retratando uma estrada específica, é claro que tive que fazer as minhas pesquisas antes, fui em alguns lugares e tirei algumas fotos e fui observando como cada elemento se comporta visualmente no cenário para que o resultado final tivesse sucesso. Fiz a estrada de terra de uma forma que o observador que conheça o município de Macaúbas possa de algum jeito reconhecer que se trata de um cenário familiar à primeira vista. O personagem do sertanejo montado em um burro percorrendo a estrada já não é tão comum de se ver hoje em dia (fez parte do pedido no momento da encomenda), mas ajudou a criar um elo do elemento humano que se comunica com o ambiente, tão resistente como a vegetação que o cerca. Acredito que este tipo de cenário também se torne menos comum daqui a pouco tempo, porque tenho percebido que o progresso vem vindo com cada vez mais pressa nesta região.
Referências Artísticas
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"Futebol" (1936) de Francisco Rebolo |
A grande referência para esta pintura foi o próprio local, feito a partir da minha observação in loco e dos meus recursos artísticos, mas sempre há (aqui de uma forma mais indireta) o trabalho de outros artistas do passado e do presente que servem como fonte de alguma forma, como guia para o desenvolvimento do trabalho, logicamente descontados os estilos de pintura e traço de cada um. Um artista que me lembrei bastante quando fiz a minha obra e que eu acho muito importante mencionar aqui é o de Francisco Rebolo. É claro que há poucas semelhanças estilísticas dos meus trabalhos (ou deste) com a obra dele, além de uma imensa distancia no tempo, mas há elementos que remetem de alguma forma este trabalho ao trabalho dele. O também paulistano Francisco Rebolo Gonsales, filho de imigrantes espanhóis, foi inicialmente um pintor-decorador, foi também um ex-jogador de futebol (de 1917 a 1934) atuando por São Bento, Corinthians e Ypiranga e, após sua aposentadoria do futebol profissional, retomou a atividade de pintor de parede e de artista amador, frequentando cursos livres de desenho durante a noite. Em 1935, fundou junto a outros artistas o Grupo Santa Helena (formado por Rebolo, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Bonadei, Volpi, Humberto Rosa, Clóvis Graciano, Manoel Martins e Alfredo Rullo Rizzotti), importante grupo artístico brasileiro. Segundo Mário de Andrade, os membros deste grupo eram os artistas proletários, afinal todos vinham de origem humilde, descendentes de imigrantes e quase todos exerciam outras profissões que mantinham no dia-a-dia.
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"Paisagem do Morumbi" (1942) de Francisco Rebolo |
A parte que me fez remeter a relação do trabalho desta publicação com a obra de Rebolo é a predileção do artista por temas de ambientes suburbanos como chácaras nos arredores de São Paulo da época e do interior do Estado, paisagens variadas e pessoas simples, numa época em que a cidade de São Paulo ainda estava no princípio da sua modernização e alguns bairros mais afastados eram praticamente uma espécie de “zona rural” da cidade, como era o caso do bairro do Morumbi, apenas para citar um. Rebolo foi o artista santelenista que mais se dedicou a pintura de paisagens e, a titulo de curiosidade, vale lembrar que Rebolo enquanto jogador de futebol, desenhou o emblema do Corinthians (que foi tendo pequenas alterações ao longo dos anos, como a ondulação na bandeira de São Paulo no centro), clube pelo qual foi campeão em 1922.
A Obra
Apesar de ter sido um trabalho encomendado, de sempre ter a parte em que eu explico para a pessoa que provavelmente demoraria para ficar pronto e tudo mais, acabou levando muito mais tempo para ficar pronto do que eu tinha planejado… não me lembro ao certo quanto tempo levou, mas com certeza foi mais de 1 ano. Primeiro pelo tamanho da tela, depois pela composição da imagem que levou tempo até que eu chegasse numa conclusão de como seria e, finalmente, a parte do trabalho prático. Ao fim, deu tudo certo e o trabalho saiu da forma como eu tinha imaginado. O resultado saiu com cores vibrantes, que deixam bem evidente a sensação de calor do ambiente ao observador, mas ao mesmo tempo mostrar que há um clima agradável, com vida ao redor.
Alguns elementos chamam a atenção à primeira vista, como o personagem do sertanejo montado em seu burro bem centralizados na cena, ou da grande sombra da árvore à beira da estrada, mas houve partes que foram muito mais desafiadoras (e demoradas de se fazer), como foi com as folhas das árvores da esquerda da tela. Não poderia ser simplesmente um ou dois tons de verde, mas uma composição de cores que refletisse que também as árvores recebiam a poeira da estrada quando passam os carros ou pela ação do vento. A perspectiva das cercas da estrada também desempenha um papel importante para mostrar a grandeza do ambiente e, logicamente, criar a ilusão de profundidade no observador, que se torna ainda mais eficaz numa tela grande. Enfim, o resultado final foi muito gratificante, conseguiu atender exatamente o que eu tinha planejado e foi um grande êxito, no âmbito geral.
Imagens: Google e Arquivo Pessoal
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Referências bibliográficas:
AJZENBERG, Elza. “Francisco Rebolo” (Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros; v. 20); - São Paulo: Folha de S. Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2013.
"O Caminho Rural" by Eduardo Cambuí Junior is licensed under CC BY-ND 4.0
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