quinta-feira, 30 de abril de 2015

- Natureza morta com frutas e um observador -

Acrílico sobre tela - 50 x 70 - 2015
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Quando comentamos com alguém como foi fazer uma determinada pintura, facilmente percebemos que alguns clichês não desgrudam do imaginário popular. Um deles se refere a própria produção artística... Muitas pessoas (quase sempre aquelas que não são muito ligadas ao assunto) acreditam que o artista trabalha mais ou menos desta forma: ele fica na frente de uma tela em branco (ou qualquer outro suporte que ele possa utilizar) esperando que uma luz divina apareça do subconsciente e ilumine sua cabeça com a famosa inspiração. Neste momento há um estalo, talvez grite "eureka" e pronto, desanda a produzir a obra. Vez por outra, até pode acontecer isso, mas é algo raro e na maioria esmagadora das vezes, não é bem assim que funciona.

A ideia para uma pintura vem de diferentes formas, surgindo quase sempre muito antes do artista arregaçar as mangas... muitas vezes a ideia vem de uma forma e durante o processo ela vai sendo alterada conforme outras vão surgindo durante a produção, até ficar irreconhecível se comparado ao início. Outras tantas vezes a ideia é como se fosse uma semente que surge pequena, vai germinando na mente, ganhando corpo até gerar o fruto (ou frutos), que é a pintura propriamente. E o "ganhar corpo" que eu quero dizer, depende de pesquisas diversas que vamos nos acostumando a fazer, conforme o tempo. Uma das razões da criação do Arte por Parte, inclusive, é tentar desmistificar um pouco destes estereótipos.


O Processo Artístico

Já fazia algum tempo que eu vinha considerando a possibilidade de fazer uma pintura de natureza morta com frutas. Em 2011, inclusive, eu postei por aqui um esboço em giz pastel que eu fiz a partir de uma foto tirada em casa (e que também foi utilizada como referência para a pintura deste post). De fato, eu já vinha estudando esta possibilidade, estava tirando fotos de ambientes que poderiam me servir e fiz outros desenhos menores como forma de projeto para uma possível ideia de pintura futura. O desenho publicado aqui em 2011 foi o mais bem trabalhado deles e até dá pra dizer que este desenho foi o primeiro passo para a pintura desta publicação.

Um dos esboços que foram feitos 
sobre natureza morta
Pinturas de natureza morta servem como um excelente exercício de técnica, observação e composição, tem sua capacidade de expressividade, mas não é exatamente um tema que eu tenha vontade de fazer. Acredito que uma pintura tem que ter um apelo de expressão mais forte, falar para quem se permite a isto e as possibilidades utilizando uma natureza morta com frutas são meio limitadas, ainda que hoje isto não seja algo muito simples de alcançar apenas através de uma imagem, não importa qual o tema.

Justamente por isso, comecei a considerar que apenas uma pintura de natureza morta não seria o suficiente para atender minhas expectativas... seria necessário algo mais, algum diferencial que me permitisse fugir ao máximo de um tema tão estereotipado, mesmo que eu estivesse explorando este campo. A solução que encontrei foi a inserção de um personagem, que é uma ideia que eu ainda venho trabalhando para uma outra possível pintura. A saída foi utilizar meu filho como modelo de uma criança curiosa espiando a bandeja de frutas, que também foi modificada em relação à foto.

Referências

Tem determinados pintores da história da arte que fizeram tantas obras sobre um tema específico e as desenvolveram com tanta maestria e de forma tão marcante que inevitavelmente nos lembrarmos deles ao citar um certo tema. É difícil quando falamos de pinturas de flores e jardins e não nos lembrarmos de Claude Monet, quando falamos de balé e não nos lembrarmos de Edgar Degas ou quando falamos de natureza morta com frutas e não nos lembrarmos de Cézanne. Para esta obra específica, é claro que Cézanne foi lembrado muitas vezes e talvez até a escolha do tema para a pintura tenha um pouco da influência indireta dele, mas busquei uma referência menos óbvia, sobretudo porque o estilo de pintura e enfoque de Cézanne não está muito próximo do meu estilo de pintura. Na verdade, não houve um pintor específico que eu tenha adotado como modelo para esta pintura.

"Natureza morta" de Willem Heda
Apesar disto, conforme vamos ficando mais "íntimos" da história da arte, inevitavelmente algumas imagens se iluminam na mente quando estamos pintando algo e consequentemente algumas me vieram a mente enquanto pintava esta. A tradição de pinturas de naturezas mortas, antes de Cézanne, teve grandes contribuições principalmente na Holanda, na chamada idade de ouro holandesa, durante o período barroco (sec. XVII). Por volta de 1640, inclusive, já estava estabelecido uma espécie de padrão numa composição de natureza morta holandesa, com elementos dispostos numa certa direção, contra um fundo de parede lisa, normalmente com a presença de taças, prataria e os restos de uma refeição farta, numa simbologia à vaidade e transitoriedade da vida. Um destes artistas é o Willem Heda. Suas pinturas são de um enorme primor técnico e numa observação menos cuidadosa, dá até para confundir com uma foto. Me lembrei do trabalho dele especialmente na hora de fazer a bandeja de inox, ainda que eu não estivesse buscando seguir sua linha de trabalho em momento nenhum (e mesmo se eu quisesse, seria bem difícil chegar no mesmo nível).

Detalhe da bandeja com frutas
É essencial para o artista buscar sempre alcançar um patamar mais alto na sua técnica, mas tendo sempre em vista estabelecer o seu estilo próprio de pintura. Um dos grandes êxitos que um pintor pode conquistar é ter seu trabalho reconhecido apenas numa primeira olhada por quem já conhece o seu trabalho, sem a necessidade de que a legenda ou a assinatura seja consultada. Para isto, a história da arte serve como uma poderosa ferramenta para que esta busca por um estilo pessoal seja estabelecida. É de extrema importância para todos aqueles que pintam telas que busquem conhecer o trabalho dos grandes artistas (naturalmente, isto vale também para quem trabalha com arte, como por exemplo, professores da matéria), buscar conhecer sua importância e obra, afinal eles sempre tem alguma coisa pra ensinar, mesmo que este aprendizado seja apenas visual. Como já dizia Picasso, “A qualidade de um pintor depende da quantidade de passado que ele traz consigo”.

A Obra

Quando uma ideia de pintura surje na cabeça, geralmente vou nas lojas do ramo em busca de uma tela que se adeque ao que eu tenho em mente. Mas como a cidade que eu moro é pequena, naturalmente o comércio de material destinado à pintura é bem tímido levando em conta que o público que consome este material é relativamente baixo, mesmo que eu estimule eventualmente a produção local com cursos e palestras. Quando a ideia inicial de uma pintura de natureza morta veio, logo considerei que a melhor medida para esta pintura seria de 50 x 70cm, mas a única tela disponível neste tamanho naquele momento era daquelas que já vem pré-desenhada de fábrica, com motivo floral.

Estudo para a pintura "Banhistas" 
de Renoir, utilizando a técnica 
da imprimatura
Por este motivo, decidi que a técnica que eu usaria para esta pintura seria a imprimatura, muito utilizada até metade do século XIX. A imprimatura consiste numa técnica em que a tela seja pintada antes com uma camada de cor neutra como base. Desta forma, solucionei o problema do desenho que já veio na tela. As cores mais utilizadas neste processo costumam ser as cores com tons terrosos, como terra de siena, marrom van dyck, etc, mas há quem faça com cinza, cinza-azulado ou com outras cores, de acordo com o tema. Com esta técnica, o pintor pinta camada sobre camada, deixando transparecer um pouco das cores que ficam na base. Funciona muito bem para a pintura de pessoas, inclusive. Desta forma, fica mais fácil perceber se o tom da cor que estamos usando está correto. Numa pintura feita sobre uma base branca, é bem comum o artista se confundir um pouco e deixar a pintura muito clara no início, porque inevitavelmente ele sempre compara as cores que usa com o branco da tela, que sempre será mais claro, até que as outras sejam usadas e ele perceba o engano no tom, caso aconteça.

Alteração nas dobras do tecido - antes e depois
Alguns detalhes deram mais dor de cabeça do que eu imaginava como foi com o tecido sobre a mesa. Tive que refazê-lo, pois na primeira vez, as dobras ficaram muito realçadas e ficou um aspecto estranho. Outra coisa que deu um trabalho inesperado foi conseguir deixar a parede do fundo com uma cor homogênea. Estes dois elementos levaram mais tempo do que eu imaginava, mas no final deu tudo certo.

"Orfã no cemitério" de Delacroix
Foi dada bastante atenção também para algumas partes como o piso na entrada da porta da parte superior à direita, assim como a expressão dos olhos da criança. Para esta parte específica, busquei um efeito próximo a conseguida por Delacroix em "Orfã no cemitério", ainda que o ângulo do olhar entre os dois personagens fosse muito diferentes, não possibilitasse o mesmo efeito (se eu colocasse muito brilho, daria a impressão de olhos cheios d'água). Mas o resultado agradou bastante e acho que conseguiu alcançar o resultado que eu tinha em mente, que era dar a impressão da criança como um intruso na cena observando o espectador que por sua vez, observa a tela, ou mais precisamente, as frutas da bandeja. Talvez um título que poderia servir bem esta pintura e que me ocorreu agora enquanto descrevia a cena seria "O Guardião da Bandeja de Frutas", mas vou deixar como está mesmo que está muito bom!

Outro aspecto que é bastante importante numa arte, é a mensagem que a obra precisa passar. Neste caso, à primeira vista fica a impressão que esta pintura não passa de uma cena fugaz, de cotidiano. A primeira intenção era dar ênfase à curiosidade da criança, mas depois de um tempo refletindo sobre toda a composição, só pelo fato de ser sobre uma natureza morta, ter a inclusão da criança e até das flores na beirada da janela, ficou claro para mim que a mensagem mais forte que esta pintura poderia transmitir, assim como foi com os mestres holandeses barrocos com suas naturezas mortas, era tratar do aspecto transitório da vida, que nada dura muito tempo e que ela vive em transformação, ainda que muitos segmentos da arte (como a pintura, fotografia, cinema, etc) tenham esse poder de "congelar um momento", numa tentativa de flertar com a eternidade.



Licença Creative Commons
"Natureza morta com frutas e um observador" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.

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