Acrílico sobre tela - 40 x 50 cm - 2020
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Neste ano a humanidade teve (e está tendo) uma lição muito importante, em diferentes aspectos. A realidade amarga de uma pandemia do covid-19 que já matou milhares de pessoas pelo mundo (e coloca outros bilhões em sistema de quarentena) nos mostra que algumas particularidades do nosso modo de vida contemporâneo são, no mínimo, questionáveis. E é interessante perceber que muitas opiniões polêmicas que vinham ganhando adesões em diversas regiões foram rapidamente questionadas em sua essência neste momento, como os movimentos anti-vacina, por exemplo. Questões absurdamente óbvias, como esta do exemplo, assim como as questões mais complexas também pedem revisão neste momento único da história… e é bem curioso perceber o quanto é essencial defender o que é óbvio, pois nestes tempos obscuros atuais, nem com ele podemos contar. A arte de hoje trata de uma reflexão que neste momento parece bem oportuna, que é uma espécie de analogia (meio simbólica) sobre a necessidade que temos de rotular tudo, especialmente os comportamentos e as pessoas.
O processo artístico
"Garrafa de vinho", desenho em giz pastel |
Na verdade, esta ideia já tem alguns anos... começou em 2015 quando eu tinha feito um pequeno esboço com o lápis dermatográfico e que eu planejava há algum tempo passar para uma tela, melhor trabalhado. Já tinha feito outros estudos similares também (utilizando a garrafa, mas com simbologias diferentes) e que me ajudaram a compor esta. A ideia fala do costume que as pessoas têm de rotular tudo e o quanto isto é uma atitude superficial, afinal nem tudo é tão simples assim para uma mera palavra conseguir definir um universo de concepções diferentes, especialmente quando nos referimos às pessoas e seus comportamentos.
Neste momento especial, a ideia me parece bem oportuna porque fomos colocados em nossa unidade (humanos) no mesmo risco de contrair uma doença que parece se comportar de forma muito instável de pessoa para pessoa, independente de nacionalidade, nível cultural, social ou qualquer outro rótulo que nos divida em grupos menores. Num tempo em que nosso modo de vida nos transforma em indivíduos extremamente voltados para as nossas próprias necessidades, esta situação nos obriga a pensar e olhar para o outro. É claro que também temos que ver através da lente da realidade que existem as diferenças sociais que fazem um grupo ser mais ou menos exposto aos riscos, o que gera um desconforto grande quando observamos isto, ainda mais quando temos consciência que há uma boa parcela desta “casta” que parece descolada da realidade, vivendo numa bolha. Se aplicarmos este ponto de vista para a simbologia desta arte, seria algo como se não importasse de qual vinho estamos nos referindo, se é um malbec, merlot ou carménère, se é seco ou suave, se custa uma fortuna ou se é barato, ou ainda, se por acaso estamos tratando mesmo de um vinho… no final, todos não passam de meras garrafas.
Detalhe |
Os rótulos que eu trato nesta arte funcionam mais ou menos como chamar atenção também aos estereótipos (talvez seja um primo mais caricato), logicamente aplicados apenas às questões relativas a comportamentos e condições das pessoas. Eles existem na sociedade porque resumem num “diagnóstico rápido” um tipo comportamental e, assim, eles se multiplicam e se tornam mais excludentes. Como seres sociáveis que somos, acredito que isto surgiu como um mecanismo de defesa e que ao longo do tempo, fomos adaptando para nos aproximarmos dos nossos similares. Mas esta simplificação gera distorções, como era de se esperar. Se tomarmos, como exemplo, analisar um estilo musical específico, como o rock, é possível ver uma diversificação de ramos (ou rótulos) que surgem como o heavy metal, punk, grunge, britpop e cada vez são criados nichos mais específicos e estreitos… mas será que num disco de uma banda não é possível identificar uma variedade maior de estilos? Será que todas as músicas daquele álbum correspondem exclusivamente à um único rótulo?
Detalhe |
Acho que ninguém neste momento tem condições de falar com segurança em como será o nosso futuro pós pandemia, mas acredito que muita coisa mudará no nosso meio de vida, que cultivaremos melhor a empatia, o cuidado com a vida e que estes rótulos que se multiplicam, tendem a não serem mais tantos e tão excludentes, ainda que haja uma dose grande de otimismo na minha fala. É interessante pensar também, tomando como referência a situação atual (tanto no Brasil como mundialmente), que questões mais complexas como as de cunho social e econômico também precisam ser revistas, ser mais inclusivas, até pensando que pode muito bem haver novas pandemias no futuro, além de nos antever aos impactos que uma nova revolução tecnológica pode causar com a chegada cada vez mais iminente da inteligência artificial no meio profissional, gerando multidões de desempregados.
"Gumball XV", de Charles Bell |
Neste trabalho específico, é difícil falar de uma única referência. A referência maior é a ideia aqui aplicada (que é a linha condutora), assim como falar também da minha contemporaneidade usando o meio que me cerca e a realidade (e as críticas que tenho por ela) que meus olhos conseguem alcançar, que é também uma valiosa lição que diversos grandes mestres da arte sempre pregaram na história. Em termos de técnica, acredito que é muito oportuno falar do realismo que tem um método de processo que talvez o meu trabalho se encaixe, não me refiro aqui ao realismo clássico do século XIX, de Coubert, Corot, Millet e Daumier, mas do neorrealismo que vem desde o início do século XX até os dias atuais e possui diversos representantes e vertentes (hiper-realismo, fotorrealismo, entre outros que, resumindo, não passam de apenas mais rótulos).
"Femmes au Bulldog" de Francis Picabia |
No neorrealismo (que vou nomear assim tentando resumir num único nome – rótulo – as suas vertentes), a fotografia é uma etapa ou elemento do processo, algumas vezes servindo de base para que a pintura a reproduza minuciosamente ou servindo de referência para a produção de um ou mais elementos que vão sendo “montados” de acordo com a ideia do projeto. Talvez a melhor definição para esta prática seja do artista Francis Picabia, que disse: “O pintor escolhe um motivo, depois imita o que escolheu, e por fim, deforma-o. É aqui que o artista se encontra”. A arte ao lado é o exemplo na prática do que descreveu acima o artista: ele escolheu uma modelo em uma revista erótica dos anos 1930 e a partir da foto, transformou toda a imagem, mudando elementos decorativos do quarto, do que a modelo tinha em mãos e adicionou uma segunda pessoa ao fundo.
A Obra
Detalhe |
Como eu adiantei um pouco mais acima, o processo de pintura desta tela teve início com uma foto, que montei de acordo com o que eu tinha idealizado antes. Fazer a partir de uma foto é sempre mais cômodo, porque você registra e pode utilizar depois para pintar quando for mais conveniente sem precisar se preocupar com a mudança dos elementos (luz, disposição dos objetos ou pessoas no ambiente, ângulos, etc.). Neste caso, o trabalho inicial foi ajeitar a disposição e composição dos objetos que eu tinha ao meu alcance. Para isto, utilizei uma garrafa de um vinho que eu tinha tomado um tempo antes e que, após me vir a ideia, retirei seu rótulo de uma forma que deixasse o rastro de sua existência e montei a composição na foma como me veio na imaginação, a colocando numa parte do armário da cozinha de casa, para depois fotografá-la e pintá-la mais tarde. Foi como montar a pintura (que só existia na minha mente, naquele momento) para a vida real, para mais tarde colocá-la na tela.
Esboço feito em 2015 com lápis dermatográfico |
O processo de pintura acabou sendo um tanto de sobreposição de cores, inserindo várias camadas até chegar ao ponto correto do tom de cor, da reprodução do reflexo espelhado, do sombreamento e da incidência de luz. O fato de ter produzido um esboço antes feito com uma paleta reduzida de cores (com o lápis dermatográfico), ajudou bastante a encontrar um atalho para o resultado desta pintura, que me agradou bastante e que acredito que cheguei no que eu tinha em mente, ainda que eu não tenha certeza hoje se a mensagem que eu tento passar com esta arte ficou tão clara para as pessoas, se elas conseguem fazer uma leitura mais ou menos próxima do que eu pretendia passar apenas vendo o título.
Imagens: Google
"Sem Rótulo" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em https://www.arteporparte.com/p/contato.html.
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