quinta-feira, 7 de maio de 2020

- Abaporu em tempos de pandemia -

Acrílico sobre tela - 30 x 40 cm - 2020
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Diante das circunstâncias na qual vivemos atualmente, é praticamente impossível manter uma produção artística regular sem ter como pano de fundo alguma relação com a pandemia do covid-19, pessoalmente falando, logicamente. No Brasil, além de toda a tensão e incômodo que a presença deste vírus na sociedade vem causando nas pessoas, ainda temos como agravante uma situação política caótica, em que é praticamente impossível ter uma única semana sem uma nova polêmica… tédio nos noticiários não é algo que os brasileiros possam reclamar hoje.


Voltando ao foco, a pintura deste post é novamente uma releitura, desta vez focando na obra que talvez seja a mais famosa da arte brasileira: “Abaporu” de Tarsila do Amaral. Esta pintura tem um simbolismo enorme, tanto no contexto da época em que foi produzida, sendo o marco do movimento antropofágico do modernismo brasileiro, como também com as riquíssimas correlações históricas que esta pintura nos remete.

O processo artístico

A artista Tarsila do Amaral
Entre os grandes artistas visuais brasileiros, Tarsila do Amaral nunca figurou entre as minhas favoritas. Entre os modernistas, o trabalho de Anita Malfatti sempre falou muito mais comigo do que o de Tarsila. Falando especificamente de arte brasileira, só o fato de conseguir informação relevante já é um drama à parte, ainda que hoje o cenário tenha sido consideravelmente amenizado quanto a isto (se comparado a 10, 15 anos atrás), o que também não quer dizer que hoje o acesso a esta temática seja tão farta assim e disponível. Conseguir material de história da arte brasileira antigamente era uma saga e por isto, sempre foi o caminho natural ter mais conhecimento sobre os mestres clássicos da pintura, como Leonardo Da Vinci, Rembrandt, Monet, Van Gogh, Picasso, entre outros tantos, do que conhecer sobre os grandes artistas brasileiros, algo que demorei um pouco para remediar. A oferta de livros de arte no Brasil tendo como tema os artistas brasileiros e movimentos artísticos sempre foi muito difícil e, quando conseguíamos encontrar, o preço costumava ser bem caro.

Oswald de Andrade e
Tarsila do Amaral
A ideia principal desta produção era utilizar uma obra de apelo popular e com algumas mínimas alterações, enfatizar o cenário que nos encontramos hoje. A obra mais popular da arte brasileira, reproduzida em diversos livros didáticos, presente na cultura pop e reconhecida pela população que minimamente conhece algo de arte (e que ironicamente tem como lar a Fundación Constantini – Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, na Argentina) me pareceu a escolha perfeita para ser utilizada, principalmente quando levamos em conta a riquíssima história por trás de sua simbologia, dos seus bastidores e que vamos tratar mais abaixo.

Detalhe de "Abaporu em tempos
de pandemia"
Segui o traço de Tarsila, fiz a adequação necessária ao tipo de tinta (a minha foi em tinta acrílica e o original foi pintado a óleo), ao tamanho que me propus pintar (o original tem 85 x 73 cm), busquei seguir a mesma gama de cores (o que é um desafio à parte, uma vez que fui obrigado a me basear em reproduções que nem sempre são fiéis ao original) e apenas acrescentei dois itens que imediatamente nos remetem ao cenário endêmico atual que é a máscara de proteção e um tubo de álcool em gel. Apenas com estas duas inserções, julguei que já era mais do que suficiente para criar um leque de interpretações.


Referências

"Abaporu" de Tarsila do Amaral
Obviamente, a referência máxima desta produção é a obra “Abaporu”, mas tão importante quanto isto, há também o caráter da simbologia do trabalho, que fala tanto da autora como da fabulosa história por trás do título que foi escolhido. Como já é bem conhecido, abaporu significa “homem que come carne humana” em tupi-guarani, língua dos indígenas brasileiros. Esta tela foi feita em 1928 como um presente de aniversário ao seu marido, o poeta Oswald de Andrade, que ficou particularmente impressionado e que viu na expressão do personagem um homem plantado na terra, um antropófago. Pouco tempo depois, Oswald de Andrade escreveu o Manifesto Antropofágico que fazia uma analogia ao processo de canibalização da cultura europeia pelo homem americano para a formação de sua própria cultura, após digeri-la e moldá-la aos seus próprios costumes.

Filme "O Homem Que
Desafiou o Diabo" (2007)
Esta obra acaba falando, um tanto inconscientemente pela própria autora, sobre si mesma e sobre seus medos de infância. Ao ouvir o relato de uma amiga que disse que a pintura a fazia lembrar de seus pesadelos, a pintora acabou se lembrando das histórias que a impressionavam quando criança contada pelas pretas velhas da fazenda, geralmente à noite, na qual numa sala fechada se ouvia uma voz vinda do teto, por uma abertura no forro, dizer: “eu caio!”. E caía um pé, depois novamente vinha a frase e caía mais um pedaço do corpo, até cair o corpo inteiro, repetindo este processo. Esta é uma antiga estória tradicional popular que se espalhou através das narrativas orais, principalmente do nordeste brasileiro, e tem diversas variações, mas basicamente a estrutura é a mesma: alguém passa uma noite num lugar abandonado e surge uma voz pedindo pra cair, mas caindo aos poucos, aos pedaços, até formar um ser. Esta mesma passagem pode ser vista em uma cena do filme brasileiro “O Homem Que Desafiou o Diabo” (2007), adaptado do livro de Nei Leandro de Castro “As Pelejas de Ojuara: O Homem Que Desafiou o Diabo”. Voltando para a obra Abaporu, de uma certa forma pode até ser interpretada como um retrato do país na época: um gigante acanhado e desequilibrado.





Patrícia Galvão (Pagu), Anita Malfati, Benjamin
Peret, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade,
Elsie Houston, Alvaro Moreyra, Eugênia Álvaro
Moreyra e pessoa não identificada
Mas é agora que as referências ficam realmente interessantes! E por que Oswald de Andrade viu no personagem da obra um antropófago dentre tantas outras coisas possíveis? Muito provavelmente isto aconteceu por influência de um livro antigo que impressionou muito os modernistas nos anos 20, e que tiveram acesso através de Paulo Prado, cafeicultor paulista que financiou a Semana de Artes de 1922. Paulo Prado era filho de Eduardo Prado, um ricaço que tinha adquirido anos antes a versão original do livro “Duas Viagens ao Brasil” do alemão Hans Staden, que acabou sendo traduzido para o português. Este livro, que foi publicado pela primeira vez em 1557, foi um best-seller em sua época e contava a fantástica (e verídica) história vivida por seu autor no período em que esteve no Brasil.


Livro "Duas Viagens ao Brasil"
de Hans Staden
Hans Staden era um mercenário e soldado alemão (tendo experiência como artilheiro, arcabuzeiro e bombardeiro) que saiu de casa aos 20 anos em busca de aventuras e veio parar no Brasil. Em sua primeira viagem, bem mais curta, chegou no Cabo de Santo Agostinho (PE) e viu o cerco que os índios Caetés fizeram ao vilarejo de Igarassu em revolta aos maus tratos dos portugueses. Eles ajudaram a salvar a cidade daquele ataque indígena, que já sitiava a cidade por 90 dias, e volta para a Europa em 1549. No ano seguinte volta ao Brasil e numa série de contratempos, foi capturado em 1554 em Bertioga junto com dois portugueses (os irmãos Braga) pelos índios Tamoios e levados para a aldeia deles que ficava em Ubatuba. A partir do momento em que se tornou prisioneiro dos tamoios, ele se tornou também testemunha ocular de um banquete antropofágico praticado como um tradicional ritual canibal por aqueles índios.

Ilustração representado uma passagem do ritual
antropofágico descrito por Hans Staden
Desde o momento de sua captura, uma série de costumes ritualísticos até o momento do banquete foram tomados e que foram descritos detalhadamente por Hans Staden em seu livro. O primeiro guerreiro índio que tocasse o prisioneiro no momento de sua captura era seu dono por direito e, após ser capturado e levado amarrado para a aldeia, era obrigado a entrar pulando e dizendo: “chegou a vossa comida”, recebido com festa, mas de forma hostil pelos demais índios que gritavam, ofendiam e atiravam coisas nele (frutas, pedras, etc). Mas no dia seguinte, o prisioneiro era bem tratado, alimentado e com direito a regalias. Ficava com uma corda com diversos pontos de nós amarrada em seu pescoço (chamada "muçurana"), onde cada nó representava um dia até a sua execução. No dia anterior ao banquete, era promovida uma noite de bebedeira regada a um fermentado produzido à base de mandioca (chamada “cauim”) e no dia da execução, o prisioneiro era lavado, depilado e besuntado, para depois ser coberto com casca de ovos moídos e penas.


Cena do banquete presenciado por
Hans Staden
Como parte do ritual, era deixado então que o prisioneiro escapasse para que pudesse ser caçado em seguida e ao ser trazido novamente para a aldeia era levado para o meio da taba e o carrasco o recebia, vestido com um manto feitos de penas de guará e era iniciado um processo de debate com o capturado, onde era afirmado que ali se tratava de um inimigo que já havia feito diversas maldades contra o seu povo, até ser executado por um golpe mortal de clava na nuca, no auge das acusações. A partir de então, o corpo é imediatamente cercado pelas mulheres mais velhas da aldeia que recolhem em tigelas o sangue (e os miolos) para beber ainda quente. Em seguida o corpo era escaldado para tirar a pele e depois ser assado, onde cada parte era destinada para um determinado grupo da tribo (crianças, mulheres, adultos, jovens guerreiros, etc). O banquete, que durava cerca de 4 horas, era acompanhado por música tocada por tambores e flautas feitas a partir dos ossos de antigos capturados.


O alemão Hans Staden
Hans Staden, que viu acontecer todo o ritual com outro prisioneiro, acabou se livrando de virar o prato principal do próximo banquete através de um enorme golpe de sorte, que ele atribuiu aos índios como um reflexo da fúria do seu deus por vê-lo em perigo de morte. Antecedendo a sua vez, começou um período de vários dias de chuva intermitente, que o alemão afirmava aos índios ser por conta da tristeza do seu deus. Quando os índios, que eram muito supersticiosos, pediram para ele falar com o seu deus para parar a chuva, veio a sorte maior: a chuva parou e o sol abriu. Ele se livrou de ser comido e ao voltar para a Europa, escreveu o livro com esta aventura fantástica e tornou conhecida esta curiosa tradição, o ritual antropofágico, que nestes moldes era uma exclusividade brasileira e que, séculos depois, impressiona Oswald de Andrade que faz uma relação daquela história como uma metáfora para criar o Movimento Antropofágico, que anos mais tarde serviu como grande influência para o surgimento dos Movimento Tropicalista no Brasil, como um desdobramento cultural.


A Obra

Detalhe de "Abaporu em tempos
de pandemia"
A pintura saiu exatamente como eu havia planejado e observando com um pouco de atenção o resultado, transportando o contexto da imagem para os tempos atuais e considerando a inserção destes dois elementos que estão tão presentes na nossa rotina de quarentena, traz uma mensagem bem direta e ampla. Além da necessidade do isolamento social, que não deixa de ser um ato de esforço, o personagem com máscara de proteção, sentado apoiando sua cabeça por um braço e segurando um recipiente de álcool em gel na outra, transmite também um ar de tédio (bem típico em muitas pessoas por conta destes tempos de enclausuramento). Como havia dito no começo, encontrar o tom equivalente ao utilizado na pintura original foi um pequeno desafio, pois é bem difícil a fotografia corresponder ao que é na realidade… na gravura do livro que eu tenho sobre a autora o tom do céu é menos vibrante, a pele do personagem é mais opaca. Em imagens que encontrei na internet, já há uma variação significativa. Como o propósito de uma releitura é sempre dar a sua própria versão da mesma história, achei que estas possíveis variações no tom não eram tão importantes assim. No final, o que importa de fato é a expressão, a mensagem.

Imagens: Google

Referências:


RIBEIRO, Maria Izabel. “Tarsila do Amaral”. 1. Ed. – São Paulo: Folha de S. Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2013. Coleção Folha Grandes Pintores Brasileiros; v. 3)

STADEN, Hans. “Duas Viagens ao Brasil”. Tradução de Angel Bojadsen. L&PM Editores, 2007. Disponível em: https://www.amazon.com.br 



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"Abaporu em tempos de pandemia" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
Podem estar disponíveis autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em https://www.arteporparte.com/p/contato.html.




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