Acrílico sobre tela - 50 x 70 cm - 2020
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É muito complicado explicar o cenário político-social no Brasil hoje e como chegamos neste ponto. O país, antes de qualquer coisa, é vítima de um vírus que causa muitas baixas na população, muito mais do que os números oficiais dizem (como já é conhecido) e, como agravante, temos uma crise política absurda, um país dividido, um governo inoperante imerso numa guerra de discursos ideológicos onde até a ciência (ou a sua negação) é usada como identificação de uma vertente política. A arte de hoje fala, de uma forma indireta, sobre essa divisão que neste momento de pandemia, deixa ainda mais exposta a desigualdade social e racial no país.
O processo artístico
Já comentei inúmeras vezes neste espaço que a produção de uma obra de arte precisa expressar algo, ter uma mensagem (seja ela difusa, explícita, simbólica, etc.), falar das coisas que cercam o artista, do que se passa com ele internamente, das pessoas em volta dele e (ou) do que está ocorrendo no seu tempo. Logicamente que não precisa ter todos estes elementos ao mesmo tempo, mas que tenha pelo menos um destes elementos (se é que me lembrei de todos). A arte não precisa necessariamente fazer sentido, dependendo de cada artista, mas acho que a arte precisa provocar algo nas pessoas. E cada artista explora a linha conceitual que mais se sente confortável em trabalhar.
O grande motivador para a produção desta arte foi o fruto de um processo de percepção do crescimento de uma linha de discurso adotada pela elite brasileira (parte dela) no período da produção desta pintura, que foi há um pouco mais de 15 dias (e que ilusoriamente parece ser mais distante). Começou a ficar mais comum ver pessoas deste círculo comentando que o pior da pandemia já tinha passado, que o vírus já tinha ultrapassado seu pico e começava o período de declínio e coisas do tipo, justificando que já era o momento de voltar à normalidade, mesmo com dados frequentes mostrando que o país está navegando numa direção oposta, com crescimento do número de mortos e infectados. O que explica um discurso tão absurdo? No começo eu fiquei sem entender claramente o que estava motivando esta distorção tão gritante na percepção da realidade até ver a fala de uma pessoa envolvida no mercado de ações, numa transmissão ao vivo de redes sociais, dizendo que o vírus já não afetava tanto as classes A e B e que estava mais presente nas classes mais pobres, no momento, o que na cabeça dele justificava a retomada da normalidade. É um comentário extremamente terrível e que mostra o tamanho da desigualdade social que impera no país, que está impregnada na forma tortuosa de pensar (e que diz muito sobre quem fala) e nos faz refletir qual é o peso que uma vida tem, dependendo de qual classe social o indivíduo que nos referimos faça parte, de acordo com essa “opinião pública” tradicional.
São planetas distintos se compararmos, dentro de uma mesma cidade, um bairro de classe alta com um de classe baixa. E quanto maior é a cidade, maior parece ser este abismo entre eles. Logicamente há maior dificuldade destas pessoas mais simples em se cuidar adequadamente, a assistência é escassa, nem sempre é possível tomar medidas de prevenção recomendadas, muitos dos quais nem tem condições de se manter em quarentena, pois grande parte vive num ambiente super povoado em pouquíssimos cômodos (quando há mais de um), vive do trabalho informal e dependem do que ganham diariamente. Somado a isto, o auxílio que o governo federal disponibilizou para as pessoas que se enquadram no perfil é muito abaixo do que é preciso para se manter dignamente. Imagine então a situação: Se para comprar o essencial já não é o bastante, será que vai ter como comprar equipamentos de proteção, como uma mera máscara? A saída normalmente é improvisar com o que está ao alcance. Todo este relato que conto aqui é o contexto que me conduziu até chegar nesta cena específica, que numa única imagem, estática, conta uma história complexa de desigualdade social, de enfrentamento de uma pandemia, de dificuldade / facilidade de acesso a materiais, de uma estrutura de amparo / desamparo domiciliar, dependendo para qual lado se olhe. É o encontro inesperado de dois indivíduos de realidades opostas que se entreolham, com ar de curiosidade e desconfiança mútua.
Referências
"Triplo Auto Retrato" de Norman Rockwell |
O cenário contemporâneo obviamente é a maior referência para este trabalho, mas inevitavelmente a gente sempre traz um pouco conosco dos artistas que nos inspiraram em alguma medida em nosso percurso, de certa forma ajudando a moldar a forma como produzimos a nossa própria arte. Tem momentos em que percebo que alguns trabalhos meus acabam dando um aspecto de crônica, de charge (o que me causa um breve desconforto), e isto provavelmente tem um pouco da influência de um artista que há muito tempo admiro bastante, que é o norte-americano Norman Rockwell, figura super querida nos Estados Unidos. Na verdade, ele foi o caso raríssimo de um ilustrador que se tornou famoso, que fez a maioria do seu trabalho como um produto comercial sob encomenda de revistas e agências publicitárias e que mais tarde ganhou o status de grande nome da arte, principalmente após sua morte.
"O Problema que Nós Todos Convivemos" de Norman Rockwell |
"Arte Crítica" de Norman Rockwell |
Suas ilustrações fizeram sucesso entre o público estampando revistas como o Saturday Evening Post e a revista Look, mas foi muito criticado também, sobretudo por aqueles do meio artístico tradicional, quando nos seus últimos dez anos de vida fez algumas exposições, ainda que fosse admirado e até mesmo condecorado com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente americano Gerald R. Ford. Foi amado e denegrido. Havia um forte preconceito das pessoas do mundo institucional da arte que consideravam que a ilustração era um ramo menor da produção de imagens e, portanto, ele não poderia ser considerado um artista de fato. Sua arte, que muitas vezes foi rotulada como uma “arte pública”, “arte simplista” ou como “o retrato mais literal da América”, era predominantemente uma reflexão sobre diversas questões sociais, comportamentais, culturais e sobre assuntos políticos.
A Obra
Os dois personagens da obra são retratos de duas realidades sociais bem distintas. De um lado, um homem branco, de olhos e cabelos claros, bem vestido, supostamente de uma condição financeira melhor e utilizando máscara e o protetor facial como prevenção, ao lado de um muro alto com uma calçada larga, superprotegido por uma cerca elétrica e arame farpado. De outro lado um homem negro, vestido com roupas simples (camiseta, bermuda e chinelos), improvisando uma proteção com um galão de água adaptado para ser um protetor facial, próximo de uma calçada estreita, ao lado de uma área isolada por vegetação que encobre diversas construções inacabadas, supostamente como um conjunto habitacional irregular.
A ineficácia do combate ao covid19 pelo governo, principalmente agora que aflige com mais força as classes mais pobres do país, mostra o descaso que há para a massa da população pelos governantes. Atinge com força os mais pobres, atinge os negros (que são em maior número entre os pobres) e com todo esse discurso de reabertura da economia exatamente agora, no pior momento, fica a mensagem que não há a menor preocupação com isso. Agora que explode no mundo as manifestações contra o racismo motivadas pelo infame caso de George Floyd nos Estados Unidos, morto asfixiado em Minneapollis por um policial branco que o conteve ficando ajoelhado em seu pescoço por 7 minutos. No Brasil há inúmeros casos da mesma categoria, como o recente caso do garoto João Pedro, de 14 anos, que foi morto dentro de sua própria casa em São Gonçalo (RJ) pela polícia do Rio de Janeiro durante uma operação desastrada, onde houve mais de 70 disparos... ainda houve o agravante de levarem o garoto para prestar socorro (sem deixar nenhum parente acompanhar) e ao chegar morto na base aérea, não forneceram nenhuma informação aos pais, que tiveram que sair em busca de informações do paradeiro do garoto pela região. Por mais que haja algum teor muito superficial de humor nesta pintura, há também um cenário macabro, intrínseco, de um racismo estrutural que é bem mais cruel porque vive disfarçado.
Imagens: Google
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MARLING, Karal Ann. “Norman Rockwell”. Tradução de António Mendes. Lisboa: Taschen GmbH, 2005.
CASO JOÃO PEDRO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Caso_Jo%C3%A3o_Pedro&oldid=58473693>. Acesso em: 10 jun. 2020.
GEORGE FLOYD. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=George_Floyd&oldid=58472289>. Acesso em: 9 jun. 2020.
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