quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

- O Ensaio da Filarmônica -

 Acrílico sobre tela - 50 x 70 cm - 2021

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A música faz parte predominante em minha vida e ainda que eu não saiba tocar nenhum instrumento, são raros os meus dias em que não haja nenhuma música como trilha sonora de fundo, mesmo que por vezes seja um repertório repetido que passa por muitos estilos musicais. Esse gosto pela música foi uma herança do meu pai que, assim como eu, também não sabia tocar nada, mas que era um colecionador de um gosto bem eclético e que me influenciou a levar este hobby adiante. Em Macaúbas, a instituição cultural mais resistente, que mais gerou frutos e que até hoje segue sua insistente jornada é a Filarmônica Nossa Senhora da Imaculada Conceição, fundada em 1946 e que, pelas inúmeras dificuldades que enfrentou, sempre se manteve em caráter de resistência cultural, seja pelas mãos do seu maestro-patrono, o professor José Benedito do Amaral, ou pelas mãos dos seus ex-alunos que seguiram adiante com o legado. O tema da Filarmônica já foi abordado por mim em 2010, mas tinha sido numa tela pequena, rápida e que, portanto, merecia um tratamento melhor e por muito tempo a execução desta pintura foi adiada, até que 2021 me trouxe a disposição para colocá-la em prática, da forma mais representativa e que os moradores de Macaúbas estão acostumados a presenciar: através dos seus ensaios

O processo artístico

Fonte: arquivo do artista

Quando fiz a pintura Filarmônica N. Sra. Imaculada Conceição, em 2010, a ideia era muito mais no sentido de documentar o patrimônio histórico do imóvel que além da importância de ser a sede da instituição, já serviu até como delegacia da cidade em tempos mais antigos. Naquele momento me parecia bastante claro que o conjunto arquitetônico daquele trecho sofreria uma mudança significativa em pouco tempo, levando em conta a falta de consciência da população na preservação do patrimônio histórico, como realmente aconteceu pouco tempo depois. Mas a pintura não retratava a Filarmônica em si, que em certos momentos me parece como uma espécie de “janela no tempo”, dada a singularidade da atividade. Desde então, sempre que possível, tirava fotos pontuais da atuação da Filarmônica e algumas delas figuravam como boas candidatas à uma pintura, ainda que não atendessem exatamente o que eu tinha em mente. A filarmônica ocupa um lugar muito importante na cultura macaubense, ainda que nem todos tenham consciência do quão presente ela está no cotidiano da cidade… tenho a impressão, inclusive, que é quase como um artigo de luxo que não é percebido muito bem pelos macaubenses por estar tão próximo e corriqueiro no seu dia a dia.

A evolução da pintura

Quando a vontade de pintar este tema chegou mais forte, recorri ao meu arquivo fotográfico (que já comentei por aqui em outras oportunidades) para encontrar o melhor cenário, para achar alguma imagem que pudesse me ajudar a contar uma história. Das fotos que eu tinha a disposição, três delas tinham partes muito boas, mas que por conta de um detalhe ou outro, não correspondiam ao que eu tinha em mente na totalidade. A saída que encontrei foi usar as melhores partes de cada foto, montando de acordo com o que eu tinha em mente, incluindo até alguns detalhes que não estavam lá realmente, até porque reproduzir uma foto em pintura da mesma forma como foi originalmente feita, não faz muito sentido para mim… é preciso que haja a intervenção do artista, que o foco da cena seja mudado, que haja mais coisa do que a mera reprodução de uma fotografia.

Detalhe do calçamento

A própria produção da pintura, de certa forma aconteceu quase literalmente como uma espécie de colagem também… pintei a cena principal, a rua, a calçada e as casas e depois, aos poucos, fui inserindo mais elementos como o carro estacionado na rua e as pessoas que não estão dentro da Filarmônica. Fazer o processo desta forma foi um jeito de facilitar a produção, refletir melhor onde colocar cada coisa e observar se a escala do objeto ou pessoa em relação ao imóvel estava condizente com a realidade. Na verdade, foi uma pintura bem trabalhosa, num processo longo de camada sobre camada sobre camada. Um exemplo bem claro deste processo todo de sobreposição foi a pintura do calçamento da rua, pensando na variação de cores de cada pedra, nos efeitos de luzes e sombras do ambiente, nos preenchimentos para causar o efeito de profundidade, enfim, foi talvez a parte mais árdua e demorada deste trabalho, sem dúvida.


Referências

"A Orquestra da Ópera"
de Edgard Degas

Quando entro nesta parte de “referências” das publicações, a ideia é deixar mais claro através dela como as grandes referências de artistas renomados, grandes mestres da história da pintura e de trabalhos reconhecidos influenciam o meu próprio trabalho ou especificamente o trabalho que apresento aqui. Muitas vezes nem é exatamente uma obra de arte tradicional, mas pode ser um ícone da cultura popular, ou algo do tipo. Neste caso, a referência evidente é a própria Filarmônica, mas sempre há alguma influência maior de um artista na forma como eu componho a minha pintura, seja pelo tema escolhido, pelo posicionamento dos personagens na tela ou pela forma como são trabalhados ou retratados e enquanto fazia esta, não pude evitar pensar bastante no trabalho de um artista que eu já citei diversas vezes aqui antes que é a do francês Edgard Degas e especialmente, do seu trabalho “A Orquestra da Ópera”, ainda que haja mais obras em que a música e a atuação dos músicos esteja presente, como na obra “Músicos de Orquestra”.

"Músicos de Orquestra"
de Edgard Degas

Na obra “Orquestra da Ópera”, o personagem que mais chama a atenção é o fagotista Désiré Dihau que era amigo de Degas (que foi o primeiro proprietário desta obra e que também aparece de costas na obra “Músicos de Orquestra”) e mostra em primeiro plano o trabalho dos músicos no fosso da orquestra, numa região obscura, enquanto no palco iluminado do espetáculo, num plano superior, estão as bailarinas num cenário artificialmente claro e de fantasia. Eu não entendo muito de instrumentos musicais, mas sei que na Filarmônica N. Sra. Imaculada Conceição não possui um fagote e pesquisando sobre o instrumento para esta publicação, descobri que é bem complicado para tocar, algo que já imaginava por sua semelhança com o oboé, que já ouvi dizer que é um dos instrumentos mais difíceis de tocar. 

Desta forma, decidi colocar um músico tocando um instrumento em destaque no interior do local, mas bem visível, até porque os demais estão quase todos ocultos pelas paredes e aparecem parcialmente pelas janelas. Tendo a obra de Degas em mente e considerando as características dos instrumentos que a Filarmônica possui, decidi colocar um músico na porta bem destacado, tocando  uma tuba em formato sousafone, ainda que normalmente quem toca a tuba não costuma ficar naquele local da sede quando o grupo ensaia.


A Obra

Apesar do tema “Filarmônica” ser o mesmo entre as obras de 2010 e a de 2021, são duas pinturas completamente diferentes, incluindo na forma de execução. Enquanto uma dá destaque para a parte estrutural da edificação, a outra tem como destaque a própria atuação da Filarmônica e as duas pinturas de certa forma evidenciam uma transformação ocorrida no local neste intervalo de tempo, ainda que modesta naquela altura (apenas a casa verde ao lado – casa do professor José Benedito do Amaral – incorporou um isolamento com grades), considerando que as fotos que utilizei como referência para esta pintura foram feitas em 2012. Hoje as mudanças já são mais drásticas, ainda que a sede da Filarmônica e a casa do professor José Benedito se mantenham da mesma forma, a casa amarela mais na extremidade já não existe mais e algumas construções mais altas já cercam os imóveis e muito provavelmente, em pouco tempo o cenário continuará a se transformar para um cenário mais comercial do que residencial.

Na parte do céu noturno, resolvi fazer um tipo de pintura mais expressionista, próximo do que já tinha realizado em “Esquina da Rua Vermelha”, buscando uma ilusão visual como representação da iluminação do poste da rua, que não aparece na cena, mas que se mostra mais claro conforme mais à esquerda da tela. Na rua, achei que criaria uma ambientação mais atrativa se mostrasse a iluminação da sede da Filarmônica clareando a penumbra da rua pelas aberturas das janelas. O ambiente iluminado e circundado de vida e música também tem uma força simbólica na cena, sugerindo o astral que o ambiente pode proporcionar naquele trecho, com um espectador assistindo o ensaio da rua e das portas do local, em contraste com a rua um tanto deserta e mal iluminada. A tela me agradou bastante, acho que neste formato e da forma como fiz eu consegui tratar de forma mais adequada o tema “Filarmônica de Macaúbas” e provavelmente ainda vou retornar a este mesmo tema no futuro, ainda que buscando um outro viés que já tenho em mente e que faz relação indireta com a atuação desta instituição cultural tão importante nesta cidade.


Imagens: Google

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Referências bibliográficas:

DEGAS / Abril Coleções: tradução de José Ruy Gandra. São Paulo: Abril, 2011 [Coleção Grandes Mestres; v. 11]

GROWE, Bernd. “Degas”. Tradução de Alice Milheiro. Lisboa: Taschen GmbH, 2006.

FAGOTE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Fagote&oldid=59349805>. Acesso em: 23 dez. 2021.

TUBA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Tuba&oldid=61205068>. Acesso em: 23 dez. 2021.


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"O Ensaio da Filarmônica" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
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