sexta-feira, 11 de março de 2022

- Para Além das Bolhas -

 Acrílico sobre tela - 40 x 50 cm - 2021

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Na produção de uma obra de arte, sempre tenho em vista o propósito de abordar temas que tem um caráter mais complexo, ainda que fazê-lo apenas visualmente seja um desafio que muitas vezes não é nada simples. Este tipo de desafio que me proponho cada vez que decido fazer algo do tipo é realmente um grande motivador pessoal, diferente do que acontece com temas que não tem tanta capacidade de gerar algum desconforto no espectador ou que, ao menos, estimule alguma reflexão sobre o que a pintura trata. Esta pintura específica, que tem como inspiração a obra “A Criação de Adão” de Michelangelo Buonarroti, trata sobre uma realidade contemporânea que são as bolhas virtuais, que são bolhas de informações ideológicas potencializadas pelos algoritmos das redes sociais na internet e que muitos de nós estamos imersos, mas que muitos de nós ainda não sabemos muito bem como lidar com elas.

O processo artístico

Sempre que possível, busco estar bem informado do que está acontecendo no Brasil e no mundo, com os olhos atentos para algumas nuances, para os comportamentos das pessoas na mídia, na internet, no meu próprio meio, busco analisar as coisas por um cenário mais amplo, tento até ver por um olhar mais distante para encontrar alguma visão mais lateral do que se passa e assim vou chegando às minhas próprias conclusões, naturalmente filtrando o que chega até mim. A atualidade, por si só, já é um riquíssimo campo para explorar tudo o que eu posso abordar no que produzo e de algum tempo para cá, acho que seria preciso uns três tempos de vida para dar conta de tudo o que vem surgindo. Seja pelo ineditismo ou pelo absurdo, a realidade vem sempre produzindo algum espanto novo.

"Para Além das Bolhas" (detalhe)

A ideia principal desta arte é tratar sobre como tem sido o comportamento das pessoas pautadas pelas bolhas ideológicas que as mídias digitais potencializam através dos algoritmos e como, apesar da internet já ter algum tempo em nosso dia a dia, ainda é uma novidade que não estamos sabendo como lidar adequadamente, levando em conta tudo o que vem acontecendo conosco, como o crescimento das Fake News, o poder que as chamadas big techs exercem sobre o nosso comportamento e que geram sérios efeitos, o fortalecimento de movimentos de cunho fascista pelo mundo, negacionismos de várias ordens, entre tantas outras coisas que direta ou indiretamente estão ligadas à forma como a informação passou a nos alcançar e como, através dos algoritmos, somos enclausurados em bolhas de opiniões.

No período de eleições é que este fenômeno fica ainda mais em evidência, principalmente no Brasil. Posicionamentos políticos passaram por mudanças significativas e muitas pessoas que têm uma opinião política passaram a se comportar ainda mais como uma espécie de “torcida de futebol”, por suas defesas apaixonadas e muitas vezes cegas para o que é externo de sua opinião e, mesmo que diferentes pesquisas indiquem como será o resultado ao final, ainda assim o resultado passa a ser como uma grande surpresa para alguns quando ocorre, simplesmente porque a informação a que têm acesso é apenas as que estão em consonância com a sua preferência, com o seu algoritmo de acesso, excluindo do alcance o que não condiz com o seu perfil.

Esta limitação que muitos são submetidos por conta de suas bolhas de opiniões de certa forma ajudam a estereotipar comportamentos e pessoas, algo que eu já tinha abordado na arte “Sem Rótulos” e que também acontece quando se trata das tais bolhas. De certa forma, este assunto tem rondado algumas artes que produzi recentemente, ainda que não falado diretamente antes. Na obra “Ponto de Vista” o assunto são as diversas possibilidades de encarar uma mesma realidade sob perspectivas diferentes e que também é afetada diretamente por esta manipulação do que é recebido pela internet, assim como o assunto resvala também no tema da obra “Narciso moderno” que trata do fenômeno das selfies e como as redes sociais estão afetando o comportamento das pessoas. Sem dúvida nenhuma esse é um assunto bem complexo e que transita por várias esferas.

Referências Artísticas

"A Criação de Adão" por Michelangelo (detalhe)

Desde que surgiu a ideia para esta obra, eu já tinha em mente abordar este tema explorando a obra de Michelangelo “A Criação de Adão”, o sexto das nove cenas do Antigo Testamento pintadas na parte central da abóboda da Capela Sistina. A ideia era explorar, principalmente, o icônico gestual das mãos dos personagens de Adão e de Deus, que mutuamente buscam o contato e que, ao meu ver, me serviria bem para evidenciar o isolamento das bolhas e a busca cega daqueles que querem outras informações para além das bolhas, para enxergar além, como o próprio nome da obra já sugere. Sobre o toque das mãos produzido por Michelangelo, o historiador Gombrich em seu icônico livro comenta:

“É um dos maiores milagres da arte o modo como Michelangelo logrou fazer do toque da mão divina o centro e o foco do quadro, e como revelou a ideia de onipotência com a desenvoltura e a força desse gesto de criação”. (GOMBRICH, 2015, p. 312)

"Retrato de Michelangelo"
por Daniele da Volterra

Dos artistas que são considerados a santíssima trindade do renascimento italiano (Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, que foram contemporâneos em seu tempo), eu sempre me identifiquei mais com o trabalho de Leonardo e seus ensinamentos, através das tantas observações que ele deixou em seu tratado de pintura, como a percepção das cores, os preceitos da pintura e a representação da natureza, mas é importante considerar que eles eram personalidades bem diferentes e que Michelangelo não tinha o mesmo ímpeto de escrever como Leonardo tinha, além do fato de, perto de sua morte, Michelangelo ter queimado todos os esboços, projetos e papéis que o acompanhavam nos seus últimos dias. 

"A Criação de Adão" por Michelangelo

Ainda sobre a “Criação de Adão”, trabalhei com muita atenção também para o cenário de fundo, que guarda uma curiosidade que muita gente não percebe. Michelangelo estudou muito de anatomia humana dissecando corpos, como Leonardo também o fez, e na época em que Michelangelo produziu a pintura da Capela Sistina, ele estava especialmente debruçado no tema. Ao observar a composição do fundo, percebemos que o tecido rebuscado que envolve Deus e os anjos tem o formato de um cérebro humano, o que sugere que não se tratou de um mero acaso. Michelangelo, apesar de absolutamente genial em sua obra, era também um homem de temperamento forte, solitário de hábitos anti-sociais e que vivia para o trabalho. Segundo registros de um amigo seu num período doentio do artista por volta dos seus 50 anos, ele comentava que Michelangelo trabalhava muito, comia pouco e mal, além de também não dormir e relatava ainda que já fazia alguns meses que o artista sofria com dores de cabeça e vertigens. Apesar de, neste período, darem como certo que o artista não viveria muito tempo, Michelangelo morreu aos 88 anos, a poucos dias de completar seu 89º ano de vida.

A Obra

"Para Além das Bolhas" (detalhe)

Nesta obra eu busquei fazer as bolhas de forma bem realista, mas além de simbolizar o sentido de isolamento ideológico, a ideia também era tratar como se cada uma delas fosse uma espécie de um mundo independente e cada mão que aparece, habita cada um destes “mundos” que se orbitam, evidenciando assim o sentimento de isolamento delas. Centralizado na tela, repliquei as mãos principais mais ou menos na mesma posição onde estão as mãos dos personagens na obra de Michelangelo, mas as fiz monocromáticas, mais claras nas extremidades enquanto em suas bases, elas estão translúcidas, como se fossem feitas do mesmo material da bolha. 

"Para Além das Bolhas" (detalhe)

Quanto ao fundo, eu segui de forma livre o padrão de formatos, mas não o fiz de forma detalhada, uma vez que não caberia aqui um tecido rebuscado como no original. Como eu tinha a ideia de fazer uma relação entre as bolhas como se fossem planetas, busquei fazer o fundo de forma mais abstrata, um pouco mais escura que o da obra do mestre italiano até para deixar mais em evidência as mãos e as próprias bolhas, além de deixar as próprias formas como se fossem efeitos de gases, compondo uma espécie de malha espacial que abriga estas bolhas. Para a produção das bolhas, tive que recorrer às usuais referências fotográficas para reproduzir com a melhor fidelidade possível, até para gerar um destaque visual maior para a obra. No final, o trabalho acabou atendendo as minhas expectativas e acredito que a mensagem consegue expressar para o espectador em algum grau o que eu pretendia a princípio, ainda que mensurar como uma arte chega aos olhos do outro seja algo bem imprevisível e difícil de avaliar.


Imagens: Google


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Referências bibliográficas:

GOMBRICH, E.H. (Ernst Hans). "A História da Arte"; tradução Álvaro Cabral. - [Reimpr.] 16ª ed. - Rio de Janeiro: LTC, 2015.

MICHELANGELO / Abril Coleções: tradução de Carla Luzzati e Elke Silvério. São Paulo: Abril, 2011 [Coleção Grandes Mestres; v. 4]

MICHELANGELO / [coordenação e organização Folha de S. Paulo; tradução Martín Ernesto Russo], - Barueri, SP: Editorial Sol 90, 2007 [Coleção Folha Grandes Mestres da Pintura; 9]

GRINBERG, Victor. "BOLHA IDEOLÓGICA". Revista FAAP edição 292. São Paulo. Disponível em: <http://revista.faap.br/colunas/bolha-ideologica-coluna-victor-grinberg-e-professor-do-curso-de-relacoes-internacionais/>. Acesso em: 11 março 2022.



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"Para Além das Bolhas" de Eduardo Cambuí Junior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.
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